Em meio à pandemia de coronavírus, é preciso pensar no amanhã de todo o planeta
São inúmeros os aprendizados que a sociedade está tendo com a crise gerada pelo novo coronavírus, seja em perspectiva social ou econômica. Mais do que nunca, estamos preocupados com o amanhã, o que traz a oportunidade de refletirmos sobre aquilo que acontece ao nosso redor e que mundo queremos deixar para as gerações futuras. Se continuarmos com o mesmo modelo econômico, é provável que pandemias se tornem cada vez mais comuns. Para detê-las, o Brasil exerce um papel importante.
Nos últimos 10 anos, a agropecuária brasileira vem investindo em diversas iniciativas para garantir a sustentabilidade do seu negócio, principalmente visando a redução do desmatamento. As empresas produtoras de carne são um exemplo. Com o mercado brasileiro concentrado em 3 empresas, JBS, Marfrig e Minerva, seus compromissos têm grande impacto. Desde 2009, elas assinaram TACs (Termos de Ajustamento de Conduta) com o MPF (Ministério Público Federal) e Ministérios Públicos estaduais e um compromisso com o Greenpeace, nos quais se comprometeram a parar de comprar gado de fazendas com áreas embargadas ou trabalho escravo na Amazônia.
Frente aos compromissos dos grandes frigoríficos, fazendeiros desenvolveram mecanismos de “lavagem” ou “esquentamento” de gado. Eles se utilizam de documentos de fazendas regulares para vender gado proveniente de terras irregulares, em só um dos exemplos. As próprias auditorias das empresas e do MPF identificam que o compromisso das três empresas não é 100% cumprido devido a esses fornecedores indiretos – cujo controle ainda é muito incipiente. O Imazon e o Instituto Centro de Vida comprovaram em um estudo de 2017, baseados em dados de geolocalização, que áreas próximas a frigoríficos estão mais propensas a serem desmatadas. [1] A Repórter Brasil também encontrou inúmeros casos de esquentamento de gado no sul do Pará. [2]
Segundo o Forest 500, ranqueamento internacional que avalia os compromissos das 500 maiores empresas com exposição ao risco de desmatamento, JBS e Marfrig alcançaram, respectivamente, 39 e 40% de comprometimento e implementação com políticas para evitar a redução da cobertura vegetal natural. Já a Minerva atinge somente 16% da nota total. As três também estão mal posicionadas no BBFAW (Business Benchmark on Animal Welfare), ranque que avalia a incorporação do bem-estar animal nas políticas e práticas das 150 maiores empresas alimentícias do mundo. O bem-estar frequentemente é integrado em empresas que já respeitam a outros critérios de sustentabilidade.
Dada a continuidade do desmatamento da Amazônia, foram insistentemente pressionadas as grandes empresas das cadeias de soja, milho e carne. Além disso, houve compromissos e boicotes de varejistas que distribuem produtos das marcas ligadas ao desmatamento, que vêm também se comprometendo. Entretanto, frequentemente se esquece de um ator que paira acima de todos eles e é essencial para a manutenção de cada um: o setor financeiro.
Segundo estudo da ONG Global Witness, oito dos maiores conglomerados financeiros do país, Banco do Brasil, Bradesco, BTG Pactual, BV (antigo Banco Votorantim), Caixa, Itaú, Safra e Santander direcionaram quase 7 bilhões de dólares para as atividades das três grandes processadoras de carne entre 2013 e 2019, por meio de empréstimos e investimentos (operações de subscrição e participações acionárias). Deste total, 21 milhões eram empréstimos, 6,6 bilhões eram subscrição de ações e 190 milhões eram valor de ações em abril/maio de 2019.
O BNDES, responsável por alavancar essas empresas como grandes lideranças do mercado global, investia sozinho mais de 3 bilhões de dólares em ações da em JBS e Marfrig em maio de 2019, quase metade do valor investido pelos outros oito bancos ao longo de 6 anos. Enquanto isso, o Fundo Amazônia recebeu R$3,4 bilhões, o que representa cerca de US$1,3 bilhões, em seus primeiros dez anos (2018-2018). [3] Ou seja, o recurso destinado ao manejo sustentável da região representa só 13% do dinheiro direcionado a empresas potencialmente danosas à floresta. O Fundo é o principal mecanismo de financiamento de ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento da Amazônia Legal.
Atualmente, boa parte das operações de JBS, Marfrig e Minerva se concentram nos estados da Amazônia Legal, que já representam 40% de todos os abates do país. Consequentemente, parte significativa desse dinheiro é utilizado ali, financiando indiretamente milhares de hectares de desmatamento. O volume transacionado entre os grandes bancos e os grandes frigoríficos mostra a interdependência que eles têm. Portanto, é essencial que os bancos tomem atitude para frear o desmatamento da floresta equatorial.
Os bancos brasileiros são obrigados a terem Políticas de Responsabilidade Socioambiental desde 2014, de acordo com a Resolução do CMN Nº 4.327. De fato, eles escreveram políticas que garantem o cumprimento de critérios socioambientais mínimos por empresas que financiam ou nas quais investem. Entretanto, o Guia dos Bancos Responsáveis identifica que essas políticas sequer atingem metade dos critérios que seriam ideais para garantir o manejo sustentável da floresta. A média da nota dos nove maiores bancos brasileiros no tema de proteção das florestas é somente 29% do total, e menor ainda (24%) nas políticas para o agronegócio. O Guia é uma iniciativa de uma coalizão de organizações civis brasileiras, liderada pelo Idec - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, e calcula o grau de compromisso dos bancos com a agenda de sustentabilidade em diversos setores econômicos.
O setor financeiro também contribui para o financiamento de empresas que levam ao desmatamento devido à falta de transparência. Mais uma vez, os frigoríficos têm destaque. Para além do que os grandes bancos investem em Minerva, Marfrig e JBS, há também volumosos investimentos vindo de bancos menores, corretoras, fundos de investimento e fundos de pensão, que totalizam 72 instituições financeiras. Juntas elas detinham quase US$136 milhões em ações dessas 3 empresas, 71% do valor em ações que veio dos maiores bancos comerciais.
Quantia significativa dessas participações acionárias é proveniente de fundos de investimento. Ou seja, há milhares de investidores que compraram cotas desses fundos sem saber que poderiam estar financiando o desmatamento da Amazônia. Dessa forma, é necessário que reguladores e instituições financeiras desenvolvam alternativas que deem mais transparência aos investimentos de fundos, para que investidores tenham mais consciência de onde estão alocando seu dinheiro. Além disso, as instituições financeiras devem ampliar o número de fundos que investem somente em empresas que cumpram determinados critérios socioambientais, pois é uma via mais rápida e fácil para as reforçarem seu dever de promoção da sustentabilidade.
Ainda no imperativo da transparências, é urgente que as instituições financeiras publiquem informações sobre quais empresas são suas clientes e quais critérios socioambientais demandam de cada setor da economia. Atualmente ainda há muitas políticas que não são publicadas e pouca ou nenhuma nitidez sobre as companhias que um banco financia. O BNDES é o único banco que torna público o montante investido em cada empresa.
Também há um segundo imperativo, de monitoramento. Em vista das inovações que alguns fazendeiros criaram para “lavar” sua inconformidade ambiental, é urgente que frigoríficos, varejistas e instituições financeiras aperfeiçoem seus sistemas a fim de assegurar a cobertura de fornecedores indiretos na cadeia da carne. Dentre os mecanismos essenciais para atingir este objetivo estão a garantia de que os sistemas de conformidade dos abatedouros bloqueiem compra de áreas embargadas ou com utilização de trabalho escravo – seja de fornecedores diretos ou indiretos - e a consideração do transporte de gado entre fazendas por parte das auditorias dos frigoríficos.
O combate ao desmatamento é uma oportunidade para o desenvolvimento econômico do Brasil e contribui para a obrigação que o país tem de redução das emissões de gases do efeito estufa. A promoção da sustentabilidade garante acesso a mercados consumidores, agrega valor aos produtos e melhora a produção em áreas mal utilizadas, aumentando a produtividade do agronegócio brasileiro. Aspectos socioambientais já são fatores críticos para o acesso a certos mercados e tendem a se tornar uma regra.
Por fim, a manutenção de habitats e da biodiversidade também é uma questão de saúde pública. Ela dificulta a transmissão de patógenos ainda desconhecidos de animais para seres humanos. No que diz respeito à floresta amazônica, o manejo correto garante a normalidade do regime de chuvas no mundo inteiro, permitindo, assim, atender à crescente demanda global por alimentos. Por todos esses motivos, é urgente que o setor financeiro cumpra com sua responsabilidade de não financiar mais o desmatamento da Amazônia.
O que o consumidor pode fazer?
O ideal é comprar só carnes com certificações de sustentabilidade ou que tenham selo de comprovando sua origem. Entretanto, ainda são poucas as carnes no mercado que garantem rastreabilidade desde a fazenda. De certa forma isso dificulta a ação individual, mas há algumas ações que podem contribuir para um mercado mais transparente:
- Pergunte para seu açougue, supermercado ou marca de preferência a proveniência da carne que vendem, e se têm alguma política para que a carne vendida não venha de áreas desmatadas.
- Se não conseguir garantir a origem da carne, compre de pequenos produtores locais sempre que possível, ou reduza seu consumo semanal de carne bovina. Assim você contribui também para a redução das emissões de gases do efeito estufa (GEEs).
- Pressione seu banco exigindo que não financie empresas ligadas ao desmatamento, ou que melhore o monitoramento de empresas da cadeia de carne. O site do Guia dos Bancos Responsáveis permite que o envie uma mensagem demonstrando sua satisfação ou insatisfação com as atitudes de seu banco - a mensagem cai na hora na caixa de mensagem da área de sustentabilidade.
Como fazer um bom monitoramento
Apesar dos inúmeros esforços e da multiplicação da produção sustentável, o desmatamento persiste e coloca em risco a credibilidade e os mercados do agronegócio brasileiro. É preciso avançar no monitoramento e na transparência em todas as áreas produtivas.
O Imaflora, ONG brasileira que visa unir a produção com a conservação, desenvolveu um “Referencial para monitoramento” para cadeias de fornecimento livres de conversão de vegetação natural nos biomas Amazônia e Cerrado. No guia, a instituição dá direcionamentos para o aprimoramento dos sistemas de monitoramento de empresas com cadeias muito amplas e capilarizadas, como são as de JBS, Marfrig e Minerva. Algumas das orientações são:
- Estabelecer ações para identificação de fornecedores indiretos, a partir do elo de originação;
- Desenvolver banco de dados unificado de produtores, imóveis rurais, desmatamento e informações do ativo biológico de cada imóvel rural;
- Garantir e registrar dados rastreáveis de produtores e imóveis rurais bloqueados e desbloqueados;
- Conformar comitê de avaliação que estabeleça ações corretivas a partir do que foi identificado pelas auditorias;
- Elaborar relatório público para prestação de contas sobre o sistema de monitoramento.
Para baixar o Guia na íntegra, basta clicar aqui.
O problema não é só com redução da vegetação
Quando falamos do desmatamento proveniente da produção de carne estamos também incluindo aspectos de mudança climática (emissões de gases do efeito estufa), biodiversidade (redução de habitats) e direitos humanos (povos tradicionais, trabalho escravo), além de outros aspectos ambientais (como assoreamento e poluição de rios). Na prática, é impossível dissociar cada uma dessas esferas.
“Mineração, soja, gado: nosso rio Tapajós está pedindo socorro. Na frente da minha aldeia, tem três projetos de portos de soja”, disse Alessandra Korap Munduruku durante uma audiência pública em Brasília em abril de 2019. [4] Ela é do povo Munduruku, um dos povos indígenas cujo território reúne todas ameaças que a Amazônia sofre hoje: mineração, monocultura de grãos, geração e transmissão de energia e projetos de infraestrutura de transportes. Se não cumprirem com os imperativos de sustentabilidade esses setores são uma mistura perigosa para manter a floresta de pé.
Além disso, não é só a Amazônia que sofre com o fenômeno. Hoje, o Cerrado é o bioma mais desmatado no Brasil, e a Caatinga e o Pampa também apresentam altas taxas de redução da sua cobertura original. O MapBiomas, iniciativa que alerta sobre o desmatamento de biomas brasileiros, identificou que 95% dos desmatamentos detectados no país em 2019 não foram autorizados, reforçando a necessidade de monitoramento por parte de financiadores e empresas em todo o território nacional.
Um exemplo a se seguir?
A produção brasileira de óleo de palma é um destaque internacional devido aos seus altos padrões de sustentabilidade, agregando valor ao produto brasileiro frente aos concorrentes malaios e indonésios, que lideram no volume de exportações.
Assim como a produção de carne e grãos no Brasil, empresas na Indonésia e Malásia (que detêm 85% da produção mundial do óleo) devastam extensas áreas de floresta equatorial para exportar óleo de palma. No Brasil, as plantações se concentram na Amazônia, principalmente no Pará. Mas diferentemente do que acontece no Sudeste Asiático, aqui o manejo sustentável do produto gera renda para as populações locais e mantém a floresta de pé, abrindo mercados para o nosso produto. Segundo o zoneamento da palma no Brasil, ela só pode ser plantada em áreas degradadas.
A produção brasileira é concentrada em poucas empresas e a líder do setor garante 100% de rastreabilidade da plantação até a indústria. Em 2019, o Brasil produziu 540 milhões de toneladas de óleo de palma, valor que o coloca entre os 10 maiores produtores no mundo. Boa parte do montante é de origem sustentável. Ou seja, além de gerar renda e desenvolvimento para o Brasil, disciplinar cadeias de suprimentos de commodities é uma oportunidade muito lucrativa.
Todavia, ainda que o óleo de palma brasileiro ainda guarde seu diferencial sustentável, há evidências de diversas irregularidades. O Instituto Evandro Chagas encontrou contaminação por agrotóxicos em áreas próximas a plantações e houve caso de trabalho escravo na cadeia de fornecimento de uma empresa produtora. Mais uma vez, é essencial que haja monitoramento constante por parte das empresas, que deve ser demandada por investidores e financiadores.
Referências
[1] https://imazon.org.br/publicacoes/os-frigorificos-vao-ajudar-o-desmatamento-da-amazonia/
[2] https://reporterbrasil.org.br/2020/03/acusado-por-chacina-de-colniza-cria-gado-em-fazenda-irregular-e-vende-a-fornecedores-da-jbs-e -marfrig / ; https://reporterbrasil.org.br/2019/07/jbs-mantem-compra-de-gado-de-desmatadores-da-amazonia-mesmo-apos-multa-de-r-25-mi/