Como evitar a desigualdade de gênero no acesso aos serviços financeiros de crédito?

08 março 2022

Ausência de políticas dos bancos para acesso de mulheres ao crédito é um desafio e agrava ainda mais as desigualdades de gênero no contexto da pandemia


Foto: iStock

* Por Julia Dias e Fabio Pasin

No dia 08 de março é celebrado o Dia Internacional das Mulheres. Passados dois anos da chegada do Covid-19 no Brasil, temos muito pouco ou quase nada a comemorar no que diz respeito ao combate às desigualdades, entre elas a de gênero. Se por algum momento imaginamos que estaríamos todos no mesmo barco diante da letalidade do vírus, a realidade rapidamente se impôs para afastar essa ideia: enquanto o primeiro caso confirmado foi de um homem que deu entrada em um renomado hospital particular ao retornar de uma viagem à Europa, a primeira pessoa a morrer da doença no Brasil foi uma trabalhadora doméstica - a sua patroa, recém retornada da Itália e com suspeita de contaminação, não a dispensou do serviço. 

Com o fechamento das escolas e creches, muitas mulheres se viram obrigadas a abrir mão de seus empregos para exercer o trabalho doméstico não remunerado e as funções de cuidado; os casos de violência doméstica dispararam; e as taxas de desemprego também atingiram de forma desproporcional este segmento da população. Em âmbito global, dados apresentados pela Oxfam evidenciam que os impactos econômicos da pandemia foram muito mais severos entre as mulheres, que perderam 800 bilhões de dólares em ganhos no ano de 2020. Ainda segundo a pesquisa, a riqueza conjunta de todas as mulheres e meninas da África, América Latina e Caribe - um bilhão de pessoas -, ainda é menor do que a fortuna dos 252 homens mais ricos do planeta. 

E o que as instituições financeiras têm a ver com o aumento desmedido das desigualdades de gênero? Para responder a essa pergunta, poderíamos partir de diferentes perspectivas. Neste artigo, vamos nos ater à discriminação de gênero na oferta e concessão de crédito e os desafios enfrentados pelas mulheres empreendedoras.  

Entre os setores mais afetados pela pandemia, estão sobretudo aqueles feminilizados, como o segmento do trabalho doméstico remunerado. Dados do Dieese mostram que o setor das trabalhadoras domésticas, composto em 2019 por 6,4 milhões de pessoas, das quais 92% eram mulheres, 65% negras e 75% trabalhadoras informais, perdeu 1,4 milhões de postos de trabalho em 2020, o equivalente a 24% das vagas disponíveis. 

Sem recursos para o pagamento das despesas mais básicas, sendo o auxílio emergencial muitas vezes insuficiente, muitas dessas mulheres precisaram recorrer ao crédito para garantir a sua sobrevivência e a de suas famílias. E é aí que começa o problema. 

Como evitar que as desigualdades estruturais de gênero existentes na sociedade sejam também reproduzidas na concessão de crédito para mulheres vulneráveis? São recorrentes os relatos de mulheres que foram em busca de empréstimos e se depararam com condições diferentes - e mais gravosas - daquelas disponíveis aos homens, como juros mais elevados e montantes menores. Sem ter escolha, muitas vezes acabam fechando contratos desfavoráveis e discriminatórios, podendo ser levadas inclusive a uma situação de superendividamento. 

No entanto, para se enfrentar um problema, é preciso que ele seja identificado. Por exemplo, sabemos que  a disparidade de gênero existe no pagamento de salários - com mulheres ganhando quase 20% a menos que os homens. A partir disso, é possível pensar em políticas remuneratórias para prevenir o problema. 

Contudo, quando falamos sobre a disparidade de gênero na concessão de crédito, não existem dados oficiais sobre o assunto. Ou seja, empiricamente sabemos que as mulheres são discriminadas quando buscam crédito, mas não temos dimensão do problema que nem sequer é considerado pelas instituições financeiras e pelo Banco Central.  Neste caso, além de direcionar políticas de crédito específicas para o público feminino, considerando as desigualdades estruturais, é urgente que dados e estatísticas sejam produzidos para evidenciar - ou não - as práticas discriminatórias da concessão de crédito, criando mecanismos para o enfrentamento da questão. 

 Além da possibilidade de assistir mulheres em condição financeira desfavorável, o fornecimento de crédito pelas instituições financeiras pode impactar diretamente o desenvolvimento do empreendedorismo feminino no país. Neste ramo, durante a pandemia, as empresas comandadas por mulheres negras foram as que mais precisaram interromper o seu funcionamento, as que menos tiveram acesso à crédito e, ainda, são maioria no grupo de pessoas que tiveram o crédito negado em razão da negativação de seus CPFs, segundo estudo conduzido pelo Sebrae. 

O empreendedorismo é muitas vezes convertido na gestão da sobrevivência, sendo a única saída possível para as mulheres que precisam buscar alternativas ao desemprego, exclusão do mercado formal de trabalho e à falta de renda. No entanto, nem mesmo diante deste cenário as mulheres encontram garantias ou incentivos para um tratamento equitativo. Ao contrário, de acordo com a pesquisa Empreendedorismo Feminino no Brasil, as mulheres empresárias pagam taxas de juros maiores do que os homens (34,6% frente a 31,1% a.a.). 

Nesse sentido, é importante que as instituições financeiras considerem aspectos constituintes da desigualdade de gênero - como o fato das mulheres serem as principais (senão únicas) cuidadoras de crianças e idosos, além de não possuírem suporte na criação de negócios  - ao disponibilizarem linhas de investimento para o empreendedorismo feminino, para que consigam continuar as atividades inclusive em um contexto de crise. 

Um sistema financeiro mais inclusivo para mulheres, possibilita maior acesso aos serviços financeiros, com prática de concessão de crédito com taxas de juros mais justas. As mulheres já são expostas ao gerenciamento dos recursos financeiros e administração da casa com dupla ou até tripla jornada de trabalho, sendo a maior parte não remunerado. Consequentemente, quanto maior for a vulnerabilidade econômica das mulheres que garantem a sobrevivência familiar, maiores serão os gargalos da desigualdade social. 

Deixar de discriminar não é suficiente. Para que as mulheres consigam romper o ciclo de violência - doméstica, política, econômica -, é preciso também que as instituições financeiras transversalizem as políticas de gênero em todas as suas ações. Deve-se pensar em práticas responsáveis e comprometidas, da oferta de crédito ao investimento em mulheres que se lançam ao desafio de empreender mesmo diante de todas as adversidades. E para começar, precisamos de dados - e transparência - sobre a concessão de crédito para o público feminino.

Igualdade de Gênero e compromissos públicos das instituições financeiras

Uma vez que as políticas e práticas das instituições financeiras produzem impactos sociais significativos, torna-se necessário que a sociedade civil exija compromissos mínimos destes agentes para prevenir externalidades negativas de suas atividades. É nesse sentido que o Guia dos Bancos Responsáveis (GBR)  realiza uma avaliação de políticas a cada dois anos e mensura o grau de integração de quesitos de responsabilidade socioambiental dentro das políticas das instituições financeiras. A iniciativa faz parte da Fair Finance International, uma rede internacional de organizações da sociedade civil, presente em 15 países, e que desde 2011 pressiona os bancos e outras instituições financeiras por mais compromissos relacionados a normas sociais, ambientais e de direitos humanos. A coalizão brasileira do GBR é liderada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e conta com a participação da Conectas Direitos Humanos, Instituto Sou da Paz e Proteção Animal Mundial. 

Dentre os compromissos avaliados na última edição de 2020, é oportuno destacar o desempenho das instituições bancárias no tema de Igualdade de Gênero. 

Notas dadas em uma escala de 0 a 10. Veja aqui o estudo

Esse tema analisa as políticas dos bancos tanto com relação ao seu quadro funcional, quanto às empresas que financiam/investem ou ao tratamento dispensado aos consumidores. Assim, na avaliação dos documentos públicos verifica-se como um dos elementos se a “instituição financeira possui sistemas operantes para prevenir e mitigar a discriminação de gênero com suas clientes”. 

Todos os nove maiores bancos avaliados neste elemento receberam nota zero por não contemplarem essa política em seus documentos públicos. Assim, constata-se uma grave insuficiência do setor em garantir que os serviços financeiros sejam prestados de maneira equânime entre homens e mulheres no Brasil. A inexistência de sistemas específicos para prevenir a discriminação de gênero colabora para a reprodução das desigualdades, inclusive na concessão do crédito para mulheres.

Infelizmente, tendo em vista o baixo desempenho deste tema na última edição, conclui-se que ainda há muito o que ser aprimorado no que diz respeito aos compromissos do setor bancário para assumir uma postura ativa na prevenção e combate à desigualdade de gênero. 


*Julia Dias, advogada do programa de serviços financeiros do Idec (Instituto Brasileiro de
Defesa do Consumidor)
*Fabio Pasin, pesquisador e advogado do programa de serviços financeiros do Idec (Instituto
Brasileiro de Defesa do Consumidor)