O Consignado no Auxílio Brasil coloca os mais pobres em extrema vulnerabilidade
O Consignado no Auxílio Brasil coloca os mais pobres em extrema vulnerabilidade
O Governo Federal publicou na última terça (27) a Portaria 816/2022 que prevê a liberação do crédito consignado para pessoas beneficiárias do Auxílio Brasil. O documento traz diversos abusos que podem transformar a vida das pessoas mais vulneráveis do país em um trágico problema de superendividamento, o que ataca diretamente a dignidade e os direitos humanos dessa população.
A Portaria define o prazo máximo de parcelamento do crédito em 24 meses e teto de juros de 3,5% ao mês. O que representa mais de 50% de juros ao ano e determina que a pessoa beneficiária deve arcar com a totalidade da dívida mesmo que seja desligada do programa. A portaria também prevê a proibição da prática de marketing e publicidade que incentive a contratação desta modalidade de crédito, entre outras medidas.
A ameaça à dignidade humana da população brasileira
A uma semana das eleições, a liberação da concessão do crédito consignado aos beneficiários do Auxilio Brasil é um desrespeito às famílias brasileiras que vivem em situação de extrema pobreza. As medidas anunciadas demonstram um debate apressado e raso sobre a sua aplicação, representando um risco de maior endividamento para a população mais pobre.
Com a alegação de que seria uma alternativa ao crédito caro e à prevenção da agiotagem, o consignado para beneficiários do Auxílio Brasil é operado com uma taxa de juros de 51% ao ano, quase o dobro daquela praticada na oferta de crédito consignado para beneficiários do INSS e servidores públicos.
Juros abusivos, desrespeito ao Mínimo Existencial, endividamento e outros pontos de atenção
A medida desrespeita o ínfimo teto do Mínimo Existencial regulamentado pelo próprio Governo em agosto deste ano, por meio do Decreto nº 11.150/22, que estabelece o valor de R$ 303,00 como o mínimo necessário para garantir a sobrevivência de uma família. Assim, as parcelas mensais reduzirão o valor do benefício à quantia de R$ 240,00, sem a possibilidade de interromper a incidência dos descontos. Com menos recursos, os beneficiários serão expostos às instituições que praticam o crédito caro e abusivo.
Outro problema diz respeito ao fato de que o crédito consignado terá como referência para a sua concessão não a capacidade de pagamento dos beneficiários, mas sim a margem de consignação, como já acontece com os demais usuários do crédito consignado.
Trata-se de evidente desrespeito à concessão responsável do crédito, prevista na Lei do Superendividamento, visto que a mera existência de margem para consignar não significa que o consumidor estará protegido do severo endividamento que hoje atinge quase 80% das famílias brasileiras.
Além da incidência de juros abusivos e desrespeito ao Mínimo Existencial, a Portaria não protege os consumidores de serem duramente afetados pela descontinuidade de seus benefícios. Ou seja, mesmo que o consumidor deixe de receber o Auxílio Brasil, terá que arcar com a dívida do empréstimo, conforme expressamente apresentado no Questionário do Anexo III da Portaria.
Ademais, a proibição do marketing ativo apresentada na Portaria não protege o consumidor do risco de assédio por meio de grupos nas redes sociais, que já contam com o apoio de influenciadores digitais. Tal publicidade é feita sem nenhuma preocupação com as consequências que a oferta desta modalidade de crédito pode ter sobre o endividamento, banalizando a sua contratação por meio do uso de termos que ressaltam apenas as facilidades possibilitadas pelo acesso aos recursos, mas não os seus riscos.
Por fim, a Portaria atribui a responsabilidade pela contratação do crédito consignado exclusivamente ao consumidor, explicitando que em nenhuma hipótese a União será responsabilizada. Nesse sentido, prevê que diante de eventual modificação do valor do benefício ou da margem de juros, somente será possível a mudança dos valores cobrados, se houver um acordo entre a instituição financeira e o beneficiário. E isso só valerá se for por sua manifestação expressa de vontade, possivelmente com taxas de juros mais elevadas.
Anexos trazem informações imprecisas sobre o consignado no Auxílio Brasil
O documento possui anexos que devem ser preenchidos para que a contratação do serviço seja feita. Porém, a explicação de como isso vai funcionar não é muito clara.
As instituições interessadas em operar a modalidade de crédito aos beneficiários do Auxílio Brasil deverão preencher previamente o Anexo I da Portaria, manifestando o interesse.
Já a contratação do crédito pelos beneficiários do programa se dá pelo preenchimento do Anexo II, que resume as condições pactuadas e deve ser entregue pela instituição financeira ao órgão responsável pela operacionalização do programa no Ministério da Cidadania. O documento deve ser assinado, uma vez que é proibida a confirmação da operação por gravação de voz ou telefone. Ainda que a medida seja importante, não garante que a contratação seja realizada de forma responsável pelo consumidor.
Ainda, o Anexo II, que detalha e qualifica as informações do tomador de crédito, apresenta o nome do responsável pelo grupo familiar, de acordo com registro no Cadastro Único. Essa condição apresenta uma peculiaridade, como se o crédito estivesse sendo concedido ao grupo e não à pessoa individualmente, podendo gerar conflitos jurídicos e familiares.
Essa condição é apresentada nos artigos 9° e 10° da Portaria, que definem as regras quando houver alteração no responsável pelo grupo familiar. Quando a pessoa que pegar o empréstimo deixar um grupo familiar e não for a única contratante do crédito, a responsabilidade continua existindo. No caso de entrada em outro grupo, o novo responsável terá que pagar o empréstimo que foi adquirido anteriormente pelo antigo responsável.
Além disso, a portaria prevê a entrega do Anexo III junto aos outros documentos, por meio do qual o beneficiário responde perguntas de educação financeira. A medida, que supostamente tem por objetivo dar consciência ao consumidor sobre as condições e riscos que está assumindo no ato da contratação, é nitidamente insuficiente, uma vez que educação não se resume ao simples preenchimento de um questionário.
Campanha das entidades da sociedade civil e papel dos bancos
Com a sanção da Lei 14.431 em agosto de 2022, o Idec e outras organizações da sociedade civil se articularam para impedir a comercialização do crédito consignado sobre o Auxílio Brasil e outros programas de transferência de renda. Isso tendo em vista a falta de estudos e manifestações técnicas dos especialistas e da sociedade civil diante dos impactos provocados pela norma.
Foi nesse contexto que surgiu a campanha Em Defesa da Integridade Econômica da População Vulnerável, que rapidamente reuniu mais de 22 mil assinaturas favoráveis ao adiamento da comercialização. A repercussão dessa medida deixou evidente a desaprovação de parcela significativa dos consumidores e do grande risco reputacional que sua operacionalização pode representar para os bancos que decidirem comercializar.
Inclusive, tamanha foi sua desaprovação inicial que algumas instituições financeiras se comprometeram a não ofertar o produto. Mesmo com tais compromissos, o Idec publicou um artigo apontando a falta de transparência das instituições financeiras que se manifestaram sobre a oferta. Com efeito, em oposição à atratividade que os juros regulamentados pela Portaria representam para os bancos, temos a significativa reprovação da sociedade civil sobre esta medida, sendo importante expor as instituições financeiras que se cadastrarem para lucrar com o consignado sobre o Auxílio Brasil.
Neste momento, é importante que as instituições financeiras façam valer seus compromissos de responsabilidade social, atuando de modo ativo para prevenir o endividamento de pessoas vulneráveis.
O risco do superendividamento
É com grande preocupação que a sociedade civil enxerga a edição da Portaria 816/2022, que foi incapaz de criar mecanismos para prevenir o empobrecimento de pessoas que já se encontram em situação de extrema vulnerabilidade.
Diante desse quadro, faz-se necessária a revisão da medida, seja por meio de decisão política ou judicial. Como ocorre, por exemplo, com a análise da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7223 que se encontra em análise do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.
Com isso, o Idec entra na campanha pela revogação do crédito consignado no Auxílio Brasil. A população brasileira precisa de um programa social que garanta valores justos em prol da dignidade humana delas e não uma oferta de empréstimos que só gera lucro aos bancos com juros abusivos.
Participe desta luta você também. Compartilhe nas suas redes sociais a sua indignação com a regulamentação dessa medida com as hashtags: #RevogaJáConsignado e #MaisAuxílioMenosCrédito
*Ione Amorim (coordenadora), Fábio Machado Pasin (advogado e pesquisador), Julia Catão Dias (advogada e pesquisadora